A decisão da editora Record de abandonar o prêmio Jabuti, anunciada na semana passada, chamou a atenção para o regulamento da festa, promovida pela Câmara Brasileira do Livro (CBL). Autores como Laurentino Gomes e Cristóvão Tezza, laureados em edições anteriores, defendem regras mais claras para a escolha do vencedor de Livro do Ano, entregue para “Leite Derramado” (Companhia das Letras), de Chico Buarque, que havia ficado em segundo lugar na categoria Romance na primeira fase do prêmio, atrás de "Se Eu Fechar os Olhos Agora" (Record), de Edney Silvestre. Contestada, a vitória motivou a criação de uma petição online, intitulada “Chico, devolve o Jabuti!”, com quase 6 mil assinaturas.
Em seu blog, Laurentino Gomes – autor do best-seller “1808”, ganhador do Jabuti de Melhor Livro-Reportagem e Livro do Ano de Não-Ficção, e “1822”, há dez semanas na lista dos mais vendidos – afirma que o afastamento da Record é ruim para a existência de um “mercado editorial ágil e vigoroso” no país e compara a situação ao impasse da revista Veja nos anos 1990 com os critérios de avaliação do prêmio Esso de Jornalismo. A revista decidiu não concorrer mais à premiação e o Esso, segundo ele, perdeu a relevância. “É preciso evitar que isso se repita com o Jabuti”, escreve. “A hora é de negociação e entendimento, não de confronto. A literatura brasileira merece esse esforço.”
Criado em 1957, o Jabuti se tornou ao longo das décadas o prêmio mais prestigioso da literatura nacional. A partir de 1991, além do troféu por categorias, passou a entregar o prêmio de Livro do Ano de Ficção e, dois anos depois, também o Livro do Ano de Não-Ficção. A primeira fase da premiação conta com um júri de três especialistas por categoria – 21 no total, como Romance, Poesia, Tradução e Capa, por exemplo –, que distribuem os vencedores entre primeiro, segundo e terceiro lugar. Para Livro do Ano, todos eles concorrem, não só o primeiro colocado, e o ganhador é escolhido a partir dos votos dos associados da CBL, que envolve ainda entidades como o Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL), Associação Nacional de Livrarias (ANL) e Associação Brasileira de Difusão do Livro (ABDL).
Na última década, ao menos em outras duas ocasiões o vencedor de Livro do Ano também não venceu em sua categoria original. Em 2004, Chico Buarque, terceiro colocado em Romance com “Budapeste”, foi o escolhido, enquanto “Mongólia”, de Bernardo de Carvalho, havia sido o eleito pelo júri. Em seu site oficial, a CBL cita a incongruência como um “fato curioso” na história da premiação. Em 2008, a mesma coisa aconteceu: Cristovão Tezza, que arrebatou a grande maioria dos prêmios literários da época com “O Filho Eterno”, inclusive o Jabuti na categoria Romance, viu o Livro do Ano nas mãos de Ignácio de Loyola Brandão, segundo lugar na categoria infantil com “O Menino que Vendia Palavras” – “Sei Por Ouvir Dizer”, de Bartolomeu Campos de Queirós, era o primeiro.
“Desrespeito” ao júri
Em entrevista ao iG, o presidente do Grupo Editorial Record, Sérgio Machado, admite que a primeira fase do prêmio é conferida por especialistas e a segunda, o Livro do Ano, representa, de certa forma, os empresários do setor. Machado, no entanto, não acredita no mérito de uma premiação assim, que, segundo ele, pelo número de votantes, favoreceria pessoas com maior capacidade midiática, caso de Chico. Além disso, duvida que os participantes tenham lido os concorrentes. “Vocês estão dizendo que ‘Leite Derramado’ é melhor do que ‘Se Eu Fechar os Olhos Agora’? Quem leu, não achou.”
Para o empresário, o objetivo de um prêmio literário é surpreender e revelar, “indicar o novo”, não aquilo que o leitor já conhece, e alfinetou mais uma vez os colegas e a CBL, afirmando que, se a ideia é contrariar os jurados, o Livro do Ano podia ser entregue a qualquer obra, não só aos finalistas da primeira fase. “Se de fato o setor entende que os júris não são confiáveis, capacitados, então por que restringir a eleição aos três primeiros colocados?”, pergunta. “Esse regulamento é desrespeitoso com os autores, que perdem, e o júri, que vê sua escolha técnica desautorizada publicamente.”
Na opinião de Laurentino Gomes, uma solução justa, transparente e fácil de entender seria que só os ganhadores de cada categoria pudessem concorrer. “Essa lista tríplice deixa um grau de relativismo sobre o que se está julgando, se qualidade literária, venda, nome do autor... Cria polêmica onde não deveria ter.” Por isso mesmo, Cristovão Tezza, embora receoso ( “tudo o que eu disser pode soar em defesa de causa própria”), defende regras claras para a premiação. “É preciso critérios mais literários, objetivos. A marca Jabuti é um patrimônio brasileiro, de grande relevância, que às vezes deixa de ser por questões esdrúxulas, incompreensíveis para o leitor comum.”
O relativismo apontado por Laurentino tem destino certo na boca do presidente da Record: política. A carta assinada por ele falava em “critérios políticos” e "pequena política do setor livreiro-editorial". O primeiro ponto, segundo Machado, tem a ver com os gritos de “Dilma, Dilma” da plateia quando Chico Buarque, correligionário célebre, subiu ao palco da Sala São Paulo para receber o prêmio, no dia 04 de novembro.
Além disso, a ganhadora do Livro do Ano de Não-Ficção, a psicanalista Maria Rita Kehl, teve notoriedade na época da eleição por defender abertamente uma candidatura em sua coluna no jornal O Estado de São Paulo. “Isso me deu a sensação de que o prêmio tivesse se contaminado por valores políticos e não de conteúdo”, diz Machado. “Nem estou alegando que tenha sido, mas da forma como está formulado, permite esse tipo de situação. Evidentemente não são critérios literários.”
Já a "pequena política do setor livreiro-editorial" estaria relacionada a um eventual interesse de favorecer uma editora a outra, o que prejudicaria o autor. “Isso tudo é possível dentro das regras atuais”, continua Machado.
O protesto que motiva a petição online “Chico, devolve o Jabuti!” segue o mesmo raciocínio. A apresentação do abaixo assinado garante que ocorreu uma premiação política, e não literária. “Como pode o segundo lugar da subcategoria se transformar, depois, no primeiro lugar da categoria geral? É uma lógica ou malandra ou asinina. Burros, eles não são. Então se trata mesmo de malandragem”, diz o texto.
Para Laurentino Gomes, a devolução do Jabuti só pioraria as coisas. “É mais ou menos como querer tirar o Tiririca do Congresso depois dele receber mais de um milhão de votos. Imagina, cassar o Jabuti do Chico, resolver no tapetão? É tornar o problema maior do que já é.” A Companhia das Letras, editora dos livros de Chico Buarque, não quis se manifestar.
“Chanchada” literária
O presidente da Record também não questiona o dono do prêmio – “Chico deveria ganhar até o Nobel” –, mas insiste na mudança das regras e explica que a decisão da editora de deixar o Jabuti pretende, no fundo, estimular um debate democrático. “Levantei essa questão para que todo mundo possa discutir. Mesmo participante assíduo do prêmio, não fui lá apresentar sugestões porque parece uma ação de querer manipular.” Por isso, diz ter feito tudo com grande antecedência, para não prejudicar a próxima edição do Jabuti. “A CBL não pode afirmar que está surpreendida, José Luís [Goldfarb, presidente da comissão do prêmio] reconhece que é muito cobrado.”
Em comunicado, a CBL afirma que todos os participantes declaram conhecer as regras no ato da inscrição e que, ao longo de 52 anos, o Jabuti “sempre se pautou pela lisura e cumprimento de seu regulamento”. A entidade ainda atesta que os votantes de Livro do Ano de Ficção e Não-Ficção são “representantes do mercado editorial com profundo conhecimento do universo do livro e da literatura”. Mesmo assim, explica que os questionamentos sobre o regulamento serão debatidos pela comissão do prêmio na primeira reunião do Jabuti 2011.
Machado comemora, mas sustenta que a Record só voltará a disputar o Jabuti se ocorrer alguma mudança. Isso não significa, no entanto, que os próprios autores não possam se inscrever: o presidente da editora deixou essa possibilidade aberta, ou “facultativa”, como diz. “Não posso obrigá-los, mas eles que peguem o dinheiro e façam a inscrição. Não quero financiar essa comédia, o que não quer dizer que a chanchada não possa continuar.”
Marco Tomazzoni, iG São Paulo
Foto:AE
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