quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Conto: A morada de Deus

Fazia eu a barba, quando minha filha de cinco anos perguntou: - Papai, onde é que Deus mora realmente?

- Num poço – respondi distraído.

- Num poço?! – exclamou relutante, diante da tolice que eu havia dito.

Durante o café da manhã, minha esposa perguntou:

- Que foi que você andou dizendo à Laurinha acerca de Deus morar num poço?

- Num poço?! - estranhei. – Deixe-me ver... por que é que eu diria isso a ela...

Naquele momento não encontrei resposta para tal, bem mais tarde, de repente, recordei-me de uma cena que estivera escondida na minha memória durante uns trinta anos. Acontecera na minha terra, à pequena cidade de Goiana, um bando de ciganos havia chegado, no sítio onde morávamos pedindo água para beber, nessa época nossa fonte d´agua era um poço que tínhamos no quintal. Ao conhecer o motivo da chegada deles, vovô foi logo dizendo: - Mazinho leve-os ao quintal e dê-lhes água. Nessa época eu deveria ter uns cinco anos.

Daquele bando, um cigano em particular me chamou a atenção, por ser gigantesco, jamais havia eu visto homem tão grande. Havia tirado do poço um balde de água, e estava de pé, com as pernas fincadas no chão, com força, e bebendo água, como se não o fizesse há dias. Um fio de água corria-lhe barba abaixo, pois nas mãos segurava o balde como se copo não houvesse. Ao terminar, puxou um lenço da cabeça e enxugou o próprio rosto. Depois se inclinou e olhou para o fundo do poço, e permaneceu assim por alguns minutos. Curioso, tentei subir pela beirada de pedra para ver o que ele tanto observava lá embaixo. O gigante notou, deu uma gargalhada e levantou-me pelos braços.

- Sabe que mora lá embaixo? - perguntou-me.

Abanei com a cabeça.

- É Deus – disse ele com convicção.

- Deus?! – esbravejei incrédulo.

– Olhe! – e segurou-me bem acima da borda do poço como um guindaste.

Lá, na água parada como um espelho, vi o meu próprio reflexo, e mais nada.

- Mas aquele sou eu! – respondi com irritação.

- Ah! – tornou o cigano, pondo-me delicadamente no chão. – Agora você já sabe onde Deus mora.
Altemar Pontes

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Conto: O JOVEM GUERREIRO

Durante o solstício, os membros do vilarejo se reuniam ao redor de uma grande árvore para festejar ao som de flautas e liras, e como já era esperado, fez-se silêncio quando o Sacerdote se aproximou.

Ele vestiu uma túnica de cor escarlate, levou os braços aos presentes e ao pé da grande árvore riscou alguns símbolos na terra branca, dando por iniciados os ensinamentos daquela noite.

Olhou para todos como quem procura alguém, e, ao avistar o jovem guerreiro Guy, filho de Gna, fez-lhe o gesto com as mãos fazendo-o aproximar. Tomou-lhe as armas e roupas, e, em seus olhos disse: Escuta o que te digo, chamarei o velho Mig's e lutarás com ele aqui, ao pé da sagrada árvore.

Guy era o mais forte, maior e o mais valente entre os homens do vilarejo. Sentiu-se, então, confuso ao ouví-lo. Como lutarei com o velho Mig's? Ele não agüentará um sopro sequer e logo cairá morto! - falou com tom seco ao Mestre; porém com outro sinal, o sapiente fez alguém se aproximar.

O velho Mig's aparentava ter mais de duzentos anos, era coxo e não enxergava de um dos olhos. Aproximou-se com certa dificuldade, fazendo o Sacerdote riscar algo no chão dando início à luta.

O jovem se movimentava com alvoroço: ia de um lado para outro, talvez pensando de qual forma ia fazer cair o velho indefeso; fez gestos com a boca e logo correu em direção a ele, como quem ataca um lobo em noite de caça. O velho esquivou-se. Bateu-lhe com uma das mãos e fez cair o jovem ao chão. Levantou-se furioso. Determinado. Rápido.

Pegou-lhe pelas pernas e quis derrubá-lo. Nada. E o velho Mig's se esquivava, mal demonstrava cansaço e com poucos gestos, fazia cair o valente guerreiro.

Quando o jovem Guy já não agüentava mais estando estirado na terra branca, o Sacerdote interveio e todos os presentes sussurravam atônitos; Yag, o ferreiro, logo questionou: Como poderia o maior entre os guerreiros se esbandalhar para um velho coxo e cego?

O Sacerdote apenas sorriu ao indagá-los:
- Quem entre vós, mais cedo ou mais tarde, não acaba sendo vencido pela Velhice?


Arquiles Petrus

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Conto: O Garoto

Tivemos uma semana e tanto na redação. Marilia, como sempre, muito nervosa com aqueles seus editoriais malucos sobre economia que eu mal entendia; ficávamos meio desorientados quando ela nos vinha com aquelas loucuras de sobe-desce da inflação. E pior: bem na hora do bendito almoço. Era engraçado como Pedro, o editor de esportes, ironizava:

- Está bem. Mas me diz aí Marilia, você acha melhor quando o negocio sobe ou desce?

E todos riam da malicia do Pedro, inclusive Marilia, que parecia gostar das nossas brincadeiras.

Justamente nesse dia, Pedro nos disse que precisávamos relaxar, que nos achava sérios demais. E ele tinha razão, a loucura de um jornal tinha nos deixado “aloprados” como ele sempre dizia. Todos adoravam aquele seu jeito meninão.

- Nós? Aloprados? – disse eu tentando revidar.

- Sim, senhor editor de textos... aloprados!

Logo depois nos surpreendeu com sua proposta: “que tal um zoológico, no final da tarde?”.

Parecia algo meio maluco, mas depois de muita insistência todos aceitaram. E antes do final de expediente lá estavam todos entrando no gol-branco de Pedro.

Logo depois de uma longa subida que dava acesso ao zoológico, vimos vários garotos em direção ao carro balançando freneticamente suas flanelinhas que mais pareciam pedaços de camisa rasgada. Como era final de tarde, paramos logo perto da bilheteria que ficava debaixo de uma grande mangueira. Tocava alguma música que não consegui distinguir, talvez daquelas antigas canções que se ouvia muito em frente das casas no final da década de oitenta. Parecia que ali o tempo não havia passado. Enquanto Marilia e Pedro compravam nossas entradas, um garoto havia me chamado atenção.

Ele estava sentado no meio-fio, um pouco distante de nós. Deveria ter oito, nove anos no máximo. Vestia uma camiseta avermelhada e uma bermuda jeans. Sentado e triste, abraçava as pernas contra o peito, apoiando o queixo num dos joelhos enquanto parecia chorar.

Algo me fez aproximar.

- Onde estão seus amiguinhos? – perguntei me agachando.

Ele chorava. Senti algo estranho quando ele me fitou. Fiquei tonto. Olhei em minha volta e tudo parecia que havia mudado; estava num parque, naquele mesmo parque que dava entrada ao zoológico; a voz de crianças se misturava ao som que saíam dos alto-falantes pendurados nos postes de madeira. Dezenas de crianças brincavam em gangorras, balanços de ferro ou subiam em casinhas de madeira para descer num escorrego. Eu suava, não entendia o que acontecia quando percebi um grupo de crianças. Sete talvez. Eu estava entre ele. Corriam todos para a bilheteria quando vi que eram amigos de infância, da minha infância; pareciam eufóricos por estar ali, prontos para entrar no zoológico recém-inaugurado, todos se remexiam afobados, menos eu. Pus a mão no bolso e não havia dinheiro, nem se quer uma moeda. Todos zombavam de mim, falavam coisas. Eu chorava, pedia algo, mas eles não me ouviam. Não queriam me ouvir. Quando entraram no zoológico sentei num meio-fio e chorei por saber que papai nunca me levaria pra ver o leão, muito menos me daria moedas. Fiquei ali chorando por quase duas horas esperando meus amiguinhos voltarem.

Dei-me conta que estava agachado na frente de um garoto que abraçava suas pernas chorando. Sentia meu coração apertado, como quem quisesse estar naquele mesmo jeito. Foi nesse momento que percebi o que na verdade os olhos daquele garoto refletiam.

Arquiles Petrus