sábado, 10 de janeiro de 2009

O PAI QUE AMAVA (Conto)


Para muitos era uma família estranha; não que seja desmantelada como essas famílias de hoje em dia. Eles eram diferentes, pelo menos para a vizinhança, sempre comentavam alguma coisa sobre eles. Talvez pelos seus hábitos esquisitos. Mas, nada fora do “normal”: trocavam as fechaduras todos os meses, não conversavam com ninguém e vestiam roupas estranhas, sem falar que nunca se via alguém lá dentro daquela casa.

A família era pequena: Hugo, o pai, alguns gatos e a pequena Clarisse de apenas cinco anos. Hugo tinha em torno de trinta. Era um magro sisudo de rosto esticado, talvez por causa de uma cicatriz que atravessava parte de seu rosto. Parecia sempre estar melancólico. Os vizinhos nunca o viram sorrindo, a não ser nas horas que ele saia para comprar os doces da pequena Clarisse, em um fiteiro da esquina. Ele era meio apressado. Não importa para onde ia ou se estava atrasado, às vezes até sem destino.

Clarisse era linda. Tinha olhos verdes (como os do pai) branquinha de tez vivaz e sempre usava roupinhas combinadas: se a pequena blusa era de cor rosada, todo o conjuntinho teria que seguir a mesma linha. Era uma exigência sua e não mudava de jeito nenhum.

- Papai eu muito gosto de você viu? – falou a pequena Clarisse, durante o jantar.

Ele se continha. Não agüentava ouvir essas coisas da pequena. Amava muito sua Bonequinha (como ele a chamava). Ela era tudo para ele, a amava de tal forma que começou a se preocupar com o seu futuro. Abriu uma popança em seu nome e começou a aplicar-lhe dinheiro. “Ah, sim, com muita certeza ela há de fazer uma boa faculdade!” pensava a cada novo deposito.

Ele adorava passar as tardes brincando com ela. Dava o próprio rosto para a Bonequinha praticar suas habilidades de maquiadora. Constrangido, ele se sentia uma sirigaita, fazendo a pequena morrer de rir.

Na hora do banho era uma novela! Há semanas que ela tomava banho sozinha. E quando ele ousava em lhe ajudar ela retrucava: “Papai, eu já sou uma mocinha, já tenho idade suficiente para me enxugar só.” Ele apenas sorria.

Numa tarde, ele estava mexendo em alguma coisa na porta.

- O que você esta fazendo papai?
- Estou trocando a fechadura.
- Fechadura papai? O que é fechadura?
- É onde colocamos a chave para fechar a porta. – explicou ele – olhe aqui.
- Ah... Entendi... Mas porque o senhor mexe muito na fechadura, papai?

Ele não respondeu. Pediu para a garota brincar com os gatos no quarto, enquanto terminava o serviço.

Deveria agora esconder a nova chave em um lugar seguro! Afastou o centro – que estava na sala – para o canto da parede, pegou uma das cadeiras da cozinha, colocou-a em cima do centro, e subiu. Tentava alcançar à divisória daquela parede, que dava para o quarto de dispensa. Começou então, ali deixar as chaves. Temia que a pequena Clarisse, saísse para a rua, sem que ele soubesse.

Ele há muito vinha se preocupando com as portas. Principalmente depois que começou a ver alguns noticiários na TV. Muitos assaltos vinham acontecendo. Não eram na cidade, diziam os repórteres, mas ele iria confiar? “O mundo está muito perigoso!” não parava de pensar nisso.

A cada novo plantão ele ficava apreensivo. Roia as unhas quando via tanta miséria e desgraça acontecendo pelo mundo afora. Já era notória sua frustração para os vizinhos.

Bastava qualquer ruído durante a madrugada para ele sair correndo para o quarto da pequena Clarisse. Ele ficava apavorado só em pensar em acontecer alguma coisa com a sua princesa. Passou então a ser guarda noturno, todas as noites encostando-se à porta do quarto da pequena. E ao amanhecer acordava assustado com os gatos se esfregando em sua perna, talvez pedindo alguma coisa para comer.

Temia o futuro da sua Bonequinha, nesse mundo de tantos assaltos, estupros... de tantas discórdias. Não agüentava mais, tinha que fazer alguma coisa para protegê-la disso tudo!

Numa manhã ele trouxe algumas caixas. A pequena Clarisse ficou eufórica quando viu as lindas bolas vermelhas, as trenas e dezenas de outros enfeites. Começara então, com a ajuda do pai, a montar a sua primeira arvore.

Quando trocava a fechadura, pela quinta vez naquele mesmo mês, ele conseguiu pensar no presente que iria dar a pequena Clarisse. Na tarde seguinte foi ao shopping. Comprou um lindo travesseiro do Ursinho Pooh que ela tanto amava e lhe deu naquela noite.

- É lindo papai! – respondeu, dando um abraço demorado.

Ele deu um sorriso triste. Apertou o abraço da filha amada e deu-lhe o beijo em sua bochecha. – Está na hora de dormir, vamos...

Tudo já estava pronto. Deitou-a na cama e ajustou o novo travesseiro. A pequena com olhar de pidona lembrou a seu pai os contos de fadas de todas as noites. Ele suspirou. Contou-lhe em fragmentos rápidos, uma fantástica fábula de uma tartaruga lerda que vencia corridas para uma lebre que se achava inteligente. E, antes que a tartaruga cantasse de galo, a pequena já estava dormindo.

Ficou observando-a. Deixou que algumas das diversas lembranças passassem por seus olhos: as maquiagens extravagantes, o banho, os sonhos... Teria mesmo que ser assim? Determinado, tirou alguma coisa do bolso.

Hesitou.

Lembrara da esposa; do triste incidente que lhe arrancou a vida. Fora assassinada quando voltava para casa. Chorou descontrolado por não conseguir proteger sua esposa daquilo tudo.

Tudo iria se repetir?!

Olhou novamente para o objeto da mão esquerda.

Ouvia-se os sinos da igreja e algumas sonatas, quando teve que mover o delicado queixo de sua Bonequinha para, enfim, esvaziar o frasco por inteiro.

No dia seguinte, encontraram-no desnorteado, chorando em meio de várias bonecas; e dentre elas, estava a pequena Clarisse.

Arquiles Petrus.
Outubro de 2007.

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