segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Obras de Lygia e Zélia ganham nova roupagem

A obra de duas damas da literatura brasileira ganha nova roupagem e já se apresenta aos leitores logo neste início do ano. Lygia Fagundes Telles e Zélia Gattai terão seus textos agora publicados pela Companhia das Letras, que desenvolveu um esquema especial de relançamento para cada uma. Zélia será a primeira a se apresentar, já em fevereiro, com a chegada de dois de seus mais famosos títulos, enquanto Lygia receberá justas homenagens em abril, com uma série de eventos.

Com uma escrita essencialmente biográfica, Zélia (1916-2001) deixou nove livros de memórias, um romance e três obras infantis O mais famoso foi justamente o que marcou sua estreia na literatura, lançado quando ela estava com 63 anos: Anarquistas Graças a Deus. Trata-se de um delicado retrato dos imigrantes em São Paulo, no início do século passado, quando italianos, espanhóis e portugueses fomentaram um movimento político-operário de fundo anarquista.

O livro tornou-se um imenso sucesso quando lançado em 1979, inspirando uma minissérie de televisão e distinguindo Zélia, que deixou de ser conhecida apenas como a mulher de Jorge Amado. "E até hoje continua muito adotado, daí nossa decisão de iniciar o relançamento com o Anarquistas e Senhora Dona do Baile", comenta Luiz Schwarcz, editor da Companhia das Letras.

As duas obras chegam em fevereiro, cada uma com um caderno de fotos, detalhe, aliás, que vai acompanhar toda a reedição. Ao todo, serão reeditados 11 títulos separadamente - outros quatro deverão ganhar um corpo único, sob a organização do competente crítico e jornalista José Castello, que vai destacar seu cunho memorialístico. "É justamente o recorte na obra da Zélia que recupera a trajetória da família Amado", explica Schwarcz.

Em junho, será a vez de um infantil, Jonas e a Sereia. Outro grande sucesso da autora, Um Chapéu para Viagem, chega em agosto Com a previsão de lançamento de dois títulos por semestre, a sequência prossegue até fevereiro de 2011, data para Chão de Meninos e Cittá di Roma.

Já os livros de Lygia Fagundes Telles começam a chegar em abril com um precioso projeto editorial: as capas serão desenhadas por Beatriz Milhazes, uma das artistas brasileiras com maior reconhecimento no exterior na atualidade. E, desde que foi formalizado o contrato com a escritora, no final do ano passado, dois consultores, Alberto da Costa e Silva e Antônio Dimas, vêm relendo seus textos para reorganizar a nova publicação.

Os primeiros livros a ganhar nova roupagem chegam também com um ensaio crítico especialmente escrito para cada um. Assim, As Meninas terá a análise de Cristóvão Tezza enquanto o próprio Antônio Dimas se encarregará de Antes do Baile Verde. E Ana Maria Machado cuidará de Invenção e Memória. As obras terão ainda uma fortuna crítica especialmente preparada.

A festa, em abril, promete ser grande - além do início da reedição, a dramaturga e escritora Maria Adelaide Amaral vai selecionar trechos da obra da escritora e convidar atores para fazer uma leitura dramática. E o escritor e compositor Arthur Nestrovski prepara uma música especialmente para o evento.

O contrato com a Companhia das Letras, que passa a ter validade a partir do próximo mês, prevê a edição de 12 títulos. Com a antiga editora, a Rocco, continuam Conspiração de Nuvens e as coletâneas Meus Contos Preferidos e Meus Contos Esquecidos cujos contratos não expiraram. E também dois livros que Lygia se comprometeu a entregar, Passaporte para a China (crônicas escritas durante a visita àquele país, em 1964) e o infanto-juvenil Gatos, Cachorros e Outros Bichos. "Ela, no entanto, continua em plena atividade e já confidenciou que vem escrevendo algo novo, o que vai coroar sua vinda à editora", comemora Schwarcz.

Fonte: AE

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Maupassant, um mestre do conto.

Henry René Albert Guy de Maupassant foi escritor, poeta e um dos maiores contistas de todos os tempos. Sua obra é conhecida por retratar situações psicológicas e fazer crítica social com técnica naturalista.

Maupassant teve uma infância e uma juventude aparentemente felizes no campo, em companhia da mãe, uma mulher culta e depressiva, que foi abandonada pelo marido.

Na década de 1870, ele se dirigiu a Paris, onde se firmou como contista e teve contato com os grandes escritores realistas e naturalistas da época: Zola, Flaubert e o russo Turguêniev.

Entre 1875 e 1885, produziu a maior parte de seus romances e contos. Escreveu pelo menos 300 histórias curtas, muitas das quais algumas se tornaram mundialmente conhecidas, como Bola de Sebo, O Colar, Uma Aventura Parisiense, Mademoiselle Fifi, Miss Harriett e O Horla.

Maupassant talvez tenha sido, nos últimos anos do século XIX, o escritor mais lido no mundo.

Rico e famoso, ele teve muitos casos amorosos, mas a sífilis o atormentou por mais de uma década, ocasionando-lhe pesadelos, angústia e de alucinações.

Em 1882, Guy de Maupassant tentou o suicídio. Morreu no ano seguinte, em um manicômio, aos 43 anos de idade. Foi enterrado no cemitério de Montparnasse, em Paris.

* 05/08/ 1850, Tourville-sur-Arques, França
+ 06/07/1893, Paris, França

Referência: UolEducação.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Nuvem Mórbida*


Os sinos tocam, uma leve ventania fazia um dos senhores segurar o seu chapéu, enquanto um dedo enrugado deslizava entre as peças de damas. Ele sentou e esperou. Observava atentamente a escadaria da igreja, as beatas desciam em pequenos passos, as crianças começavam a correr de um lado para o outro ao som da Ave-Maria que saia dos alto-falantes. Pombos circulavam do outro lado da praça, talvez, esperando um daqueles senhores sacudirem os grãos ao chão.

Ele não conseguia parar de olhar os senhores do tabuleiro; apesar de estar ali esperando há mais de trinta minutos, ele continuava com o seu sorriso de quem estivesse passando por uma experiência talvez única.

O carro parou e buzinou. Aquele barulho havia chamado a atenção de todos, inclusive dos pombos, que ao buzinar do automóvel, voaram em direção aos braços do Cristo crucificado. Você não vem? Perguntou a garota, da porta do carro.

Acertaram o encontro na tarde anterior. A mesa era estreita, mas chegava a caber diversas canetas e lapiseiras além de grossos livros de história e cadernos que se revezavam entre eles tentando um descobrir como o outro respondeu aquela questão. Mário - interrompeu ela - você já foi num asilo? Ele achou um pouco estranha aquela pergunta; o que havia o asilo com a história? Não... acho que não, por quê? Ela fechou os livros e explicou ainda com a lapiseira na mão que seus pais visitavam, sempre aos domingos, um lar de idosos perto da chácara da família. Após diversas tentativas, ele acabou cedendo.

Eram dois galpões divididos por um salão principal; na entrada um senhor trabalhava em um modesto jardim repleto de acácias; ele, assim que avistou os visitantes logo abriu um sorriso e acenou. O carro acabou parando perto da lavanderia, que ficava um pouco depois das acácias.

No salão principal, dezenas de senhores e senhoras batiam palmas em um belo louvor, enquanto outros apenas cochilavam, sentados em um dos sofás avermelhados espalhados pelo salão. Por um momento pensou em voltar para o carro e esperar que sua amiga voltasse com seus pais, mas ele era um jovem curioso. Logo entrou em um dos cômodos do primeiro galpão e apesar de ter demorado um pouco, logo se habituou.

Mas foi no quarto de número sete, que ele conheceu dona Tonha; ele sempre ficava com algum receio ao conversar com ela, mas ela era sempre comunicativa, falava de tudo: sua cidade, a santíssima e a casinha que tinha. Chorava quando falava de seus filhos. Mas logo mudava de assunto, falava da época da ditadura, lembrava do cadastro que havia feito com os comunistas. Nome? Antônia Maria Dolores. Filhos? Três. José Joaquim, José Manoel e José Severino. Fotos? E ela entregava as fotos 3x4 de cada um. Com o sentido que em uma semana chegaria os prometidos. E chegava; nas cestas vinham a cada quinze dias: arroz, feijão e batatas. Um quilo de cada.

Contou que cozinhava um pouco de cada coisa, sempre a cada quatro dias, economizava fervorosamente o santo alimento dos comunistas, mas como tudo chega a um fim. Ela chorou.

Falou da ajuda que recebia dos Bezerra e Silva; deixava os filhos em casa, todos chorando com fome: haviam passado mais de três noites sem comer nada. Chegava no armazém do Chico Bezerra por volta das quatro da madrugada. Ele quando a via, já pegava uma sacola de plástico e colocava um punhado de cada um dos cinco sacos de farinha. E ela corria para casa, fazia uma mistura de sal, água e farinha e cinco minutos depois estava todo mundo feliz, de barriga cheia.

A afinidade era tanta entre Mário e ela, que ele começou a visitá-la todas as tardes de domingo. Ficavam horas conversando e comendo pedaços de bolo (de mandioca) que ela adorava.

No quarto, de uma pequena escrivaninha ela tirava seus talheres e um prato, nunca comia em outros, sempre só nos seus. Ele sempre reparava nesses pequenos detalhes que faziam parte do cotidiano dela. Em cima da escrivaninha ela sempre acendia uma vela, e por volta de cinco minutos de seu jovem amigo chegar orava, pedindo forças e saúde ao seu novo neto.

Ele completou quinze anos, começou a trabalhar em uma obra perto de casa. Era quinta-feira da paixão, correu até lá para contar a ela sobre o seu primeiro emprego. Foi a pé. Passou pela avenida e pelas ruas do centro às pressas. A felicidade era tamanha que ele chorava de tanta alegria.

Ele murchou; sentia como se estivesse passando por uma estranha nuvem mórbida, sentiu seu coração arder ao ver uma estranha movimentação no salão principal. O que está havendo? Perguntou assustado.

O choque foi tão grande, que tudo escureceu. Bamboleou e quase caiu perto do caixão.

Arquiles Petrus
*Conto integrante do livro Cataclismo, Editora Baraúna, 2005.

sábado, 10 de janeiro de 2009

O PAI QUE AMAVA (Conto)


Para muitos era uma família estranha; não que seja desmantelada como essas famílias de hoje em dia. Eles eram diferentes, pelo menos para a vizinhança, sempre comentavam alguma coisa sobre eles. Talvez pelos seus hábitos esquisitos. Mas, nada fora do “normal”: trocavam as fechaduras todos os meses, não conversavam com ninguém e vestiam roupas estranhas, sem falar que nunca se via alguém lá dentro daquela casa.

A família era pequena: Hugo, o pai, alguns gatos e a pequena Clarisse de apenas cinco anos. Hugo tinha em torno de trinta. Era um magro sisudo de rosto esticado, talvez por causa de uma cicatriz que atravessava parte de seu rosto. Parecia sempre estar melancólico. Os vizinhos nunca o viram sorrindo, a não ser nas horas que ele saia para comprar os doces da pequena Clarisse, em um fiteiro da esquina. Ele era meio apressado. Não importa para onde ia ou se estava atrasado, às vezes até sem destino.

Clarisse era linda. Tinha olhos verdes (como os do pai) branquinha de tez vivaz e sempre usava roupinhas combinadas: se a pequena blusa era de cor rosada, todo o conjuntinho teria que seguir a mesma linha. Era uma exigência sua e não mudava de jeito nenhum.

- Papai eu muito gosto de você viu? – falou a pequena Clarisse, durante o jantar.

Ele se continha. Não agüentava ouvir essas coisas da pequena. Amava muito sua Bonequinha (como ele a chamava). Ela era tudo para ele, a amava de tal forma que começou a se preocupar com o seu futuro. Abriu uma popança em seu nome e começou a aplicar-lhe dinheiro. “Ah, sim, com muita certeza ela há de fazer uma boa faculdade!” pensava a cada novo deposito.

Ele adorava passar as tardes brincando com ela. Dava o próprio rosto para a Bonequinha praticar suas habilidades de maquiadora. Constrangido, ele se sentia uma sirigaita, fazendo a pequena morrer de rir.

Na hora do banho era uma novela! Há semanas que ela tomava banho sozinha. E quando ele ousava em lhe ajudar ela retrucava: “Papai, eu já sou uma mocinha, já tenho idade suficiente para me enxugar só.” Ele apenas sorria.

Numa tarde, ele estava mexendo em alguma coisa na porta.

- O que você esta fazendo papai?
- Estou trocando a fechadura.
- Fechadura papai? O que é fechadura?
- É onde colocamos a chave para fechar a porta. – explicou ele – olhe aqui.
- Ah... Entendi... Mas porque o senhor mexe muito na fechadura, papai?

Ele não respondeu. Pediu para a garota brincar com os gatos no quarto, enquanto terminava o serviço.

Deveria agora esconder a nova chave em um lugar seguro! Afastou o centro – que estava na sala – para o canto da parede, pegou uma das cadeiras da cozinha, colocou-a em cima do centro, e subiu. Tentava alcançar à divisória daquela parede, que dava para o quarto de dispensa. Começou então, ali deixar as chaves. Temia que a pequena Clarisse, saísse para a rua, sem que ele soubesse.

Ele há muito vinha se preocupando com as portas. Principalmente depois que começou a ver alguns noticiários na TV. Muitos assaltos vinham acontecendo. Não eram na cidade, diziam os repórteres, mas ele iria confiar? “O mundo está muito perigoso!” não parava de pensar nisso.

A cada novo plantão ele ficava apreensivo. Roia as unhas quando via tanta miséria e desgraça acontecendo pelo mundo afora. Já era notória sua frustração para os vizinhos.

Bastava qualquer ruído durante a madrugada para ele sair correndo para o quarto da pequena Clarisse. Ele ficava apavorado só em pensar em acontecer alguma coisa com a sua princesa. Passou então a ser guarda noturno, todas as noites encostando-se à porta do quarto da pequena. E ao amanhecer acordava assustado com os gatos se esfregando em sua perna, talvez pedindo alguma coisa para comer.

Temia o futuro da sua Bonequinha, nesse mundo de tantos assaltos, estupros... de tantas discórdias. Não agüentava mais, tinha que fazer alguma coisa para protegê-la disso tudo!

Numa manhã ele trouxe algumas caixas. A pequena Clarisse ficou eufórica quando viu as lindas bolas vermelhas, as trenas e dezenas de outros enfeites. Começara então, com a ajuda do pai, a montar a sua primeira arvore.

Quando trocava a fechadura, pela quinta vez naquele mesmo mês, ele conseguiu pensar no presente que iria dar a pequena Clarisse. Na tarde seguinte foi ao shopping. Comprou um lindo travesseiro do Ursinho Pooh que ela tanto amava e lhe deu naquela noite.

- É lindo papai! – respondeu, dando um abraço demorado.

Ele deu um sorriso triste. Apertou o abraço da filha amada e deu-lhe o beijo em sua bochecha. – Está na hora de dormir, vamos...

Tudo já estava pronto. Deitou-a na cama e ajustou o novo travesseiro. A pequena com olhar de pidona lembrou a seu pai os contos de fadas de todas as noites. Ele suspirou. Contou-lhe em fragmentos rápidos, uma fantástica fábula de uma tartaruga lerda que vencia corridas para uma lebre que se achava inteligente. E, antes que a tartaruga cantasse de galo, a pequena já estava dormindo.

Ficou observando-a. Deixou que algumas das diversas lembranças passassem por seus olhos: as maquiagens extravagantes, o banho, os sonhos... Teria mesmo que ser assim? Determinado, tirou alguma coisa do bolso.

Hesitou.

Lembrara da esposa; do triste incidente que lhe arrancou a vida. Fora assassinada quando voltava para casa. Chorou descontrolado por não conseguir proteger sua esposa daquilo tudo.

Tudo iria se repetir?!

Olhou novamente para o objeto da mão esquerda.

Ouvia-se os sinos da igreja e algumas sonatas, quando teve que mover o delicado queixo de sua Bonequinha para, enfim, esvaziar o frasco por inteiro.

No dia seguinte, encontraram-no desnorteado, chorando em meio de várias bonecas; e dentre elas, estava a pequena Clarisse.

Arquiles Petrus.
Outubro de 2007.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Uma galinha

Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã.

parecia calma. desde sábado encolhera-se num cante da cozinha. Não olhava para ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio.

Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto vôo, inchar o peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou – o tempo da cozinheira dar um grito – e em breve estava no terraço do vizinho, de onde, em outro vôo desajeitado, alcançou o telhado. Lá ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé. A família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto de uma chaminé. O dono da casa, lembrando-se da dupla necessidade de fazer esporadicamente algum esporte e de almoçar, vestiu radiante um calção de banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos alcançou o telhado onde esta, hesitante e trêmula, escolhia com urgência outro rumo. A perseguição tornou-se mais intensa. De telhado a telhado foi percorrido mais de um quarteirão de rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida, a galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar, sem nenhum auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido. E por mais intima que fosse a presa o grito de conquista havia soado.

Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por um momento. E então parecia tão livre.

Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser. É verdade que não se poderia contar com ela para nada. Nem ela própria contava consigo, como. o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma.

Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou. Entre gritos e penas, ela foi presa. em seguida carregada em triunfo por uma asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa violência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos.

Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade, parecia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o ovo e assim ficou, respirando, abotoando e desabotoando os olhos. Seu coração, tão pequeno num prato, solevava e abaixava as penas, enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo. Só a menina estava perto e assistiu tudo estarrecida. Mal porém conseguiu desvencilhar-se do acontecimento, despregou-se do chão e saiu aos gritos:

Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! ela quer o nosso bem!

Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente. Esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem alegre nem triste, não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum sentimento especial. O pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem propriamente um pensamento qualquer. Nunca ninguém acariciou uma cabeça de galinha. O pai afinal decidiu-se com certa brusquidão:

– Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha vida!

– Eu também! jurou a menina com ardor.

A mãe, cansada, deu de ombros.

Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar com a família. A menina, de volta do colégio, jogava a pasta longe sem interromper a corrida para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se lembrava: "E dizer que a obriguei a correr naquele estado!" A galinha tornara-se a rainha da casa. Todos, menos ela, o sabiam. Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos, usando suas duas capacidades: a da apatia e a do sobressalto.

Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido, enchia-se de uma pequena coragem, resquícios da grande fuga e circulava pelo ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo, embora a pequena cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho susto de sua espécie já mecanizado.

uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha que se recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar. Nesses momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado às fêmeas cantar, ela não cantaria mas ficaria muito mais contente. Embora nesses instantes a expressão de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no descanso, quando deu à luz ou bicando milho – era uma cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no começo dos séculos.

Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos.


Clarice Lispector,
Laços de família. Rio, Francisco Alves, 2ª ed., 1961.